Bamboozled



Nós saímos pensativos da exposição Ethnic Notions - Black Images in the White Mind, no Berkeley Art Center, em Berkeley, Califórnia. Era uma mostra pequena, mas forte em conteúdo e mensagem. Meu marido me perguntou: 'como que eu nunca tinha reparado nesses estereótipos dos negros?'. Eu respondi: 'porque você é branco!'.

Quando a californiana Janette Faulkner estudou na Lincoln University, no Missouri, ela morou com um casal de tinha um antiquário e foi lá que ela viu um postal com a foto de um homem negro, retratado de maneira caricatural e debochada. O seu choque foi enorme e isso a impulsionou a começar uma coleção de objetos onde o negro fosse representado de uma maneira estereotipada e desumana. Isso foi há 50 anos atrás. Hoje, Falkner tem uma coleção impressionante de peças de todo tipo, que já foi mostrada ao público várias vezes.

Vamos caminhando devagar pela pequena sala e esbugalhando nossos olhos com objetos que nunca tínhamos visto ou notado. Junto à vários textos explicativos estão livros, jogos, latas de biscoito e farinha, cinzeiros, bancos para moedas, copos, pratos, postais, pôsteres, embalagens, entre tantas outras coisas, todas elas mostrando caras negras exageradamente escuras, beiços largos, narizes gigantes, com olhos arregalados, cabelo desmantelado, faltando dentes. Estão lá a 'Mammy' ou 'Tia Jemima'- a gorda servente alegre e prestativa; o 'Tio'- geralmente um garçom ou um empregado contador de histórias; o 'Coon'- o malandro, vagabundo, cantador e ladrão de galinhas; os 'Pickanninnies' ou 'Golliwogs'- caricaturas de crianças negras, pressupostamente nascidas nos campos de melancias, sem pai nem mãe. Todos os objetos da mostra são utilitários de uso comum nas casas dos brancos. Neles os negros são transformados em peças, não só para serem usadas, mas também para servir de escárnio. Como a lapiseira com abridor de cartas no formato de um jacaré devorando uma criança negra, ou um saleiro e uma pimenteira em forma de pênis, decorados com caras negras e nomeados 'joyboy' e 'billdill'.

Um vídeo de quase 40 minutos explica detalhadamente o processo de separação do negro na sociedade, através da sátira e desumanização da sua figura. Desde Jim Crow - o primeiro branco a pintar-se de negro e atuar em shows cômicos - até os minstrels negros, que tinham que fantasiar-se de 'branco vestido de negro', para poderem se apresentarem em shows públicos, vemos como o negro foi representado no cinema, na televisão, nos quadrinhos dos jornais, nos objetos do dia-a-dia. Até na cartilha da escola, chamada de ABC in Dixon, onde as crianças aprendiam através do exemplo: os modelos de estereótipos.



A exibição em Berkeley casou-se perfeitamente com o que vimos no novo filme de Spike Lee, Bamboozled. Também saímos do cinema pensativos e confusos, depois do desconforto de mais de duas horas de bombardeio e crítica de conteúdo racial. Não dá pra falar sobre racismo aqui nos EUA sem tocar numa ferida purulenta, que ainda dói no fundo de cada branco, negro, índio ou asiático neste país. A problemática dos negros é a que parece mais bem resolvida, com uma quase inversão dos padrões, dando a impressão de que o bacana agora é ser negro, mesmo que você seja apenas um Jim Crow - um branco fantasiado de negro. E é justamente nessa ferida ainda aberta, que Spike Lee joga um punhado de sal.

Pierre Delacroix (Damon Wayans) é um negro educado em Harvard, com sotaque e maneirismos falsos, que escreve shows para uma emissora de televisão. Todas as suas idéias de programas retratando o negro de classe média, bem sucedido, são rejeitadas. Ele é o escritor mais criativo do pedaço e o produtor Dunwitty (Michael Rapaport) o incumbe de trazer uma idéia nova, revolucionária, criativa e chocante, para levantar o ibope da emissora, que anda mal das pernas. Delacroix e sua secretária, Sloan Hopkins (Jada Pinkett), desenvolvem a idéia de um show de minstrels. Mas eles acreditam que a idéia certamente não vai vingar. Contratam dois vagabundos, que ganhavam a vida dançando e cantando nas ruas, e os transformam em Mantan (Savion Glover) e Sleep 'n' Eat (Tommy Davidson), os astros 'coons' do novo show "Mantan The New Millenium Minstrel Show". Neste novo show todos os atores terão seus rostos pintados de preto e os estereótipos do negro pobre e ignorante das plantations de algodão do Mississipi e Alabama serão revividas e exaltadas, como uma volta ao tempo do 'negro bom'. O show tem tudo pra ser rejeitado, mas não é. Vai ao ar e vira um tremendo sucesso.

A partir daí, nada nem ninguém escapa da metralhadora do diretor, que crítica a si mesmo, seus companheiros negros, os brancos que querem ser negros, os negros radicais, os rappers, os comediantes negros que riem da própria raça (e que o próprio Lee consagrou em The Kings of Comedy), os brancos com medo e serem considerados racistas e quem mais passar pela frente. Não vai restar pedra sobre pedra, depois de uma baita cutucada no fantasma do racismo e de um final apoteótico. O diretor declarou que ainda existe muito racismo na mídia e, principalmente, em Hollywood e que ele fez esse filme para deixar todo mundo desconfortável mesmo. Bamboozled é um filme com uma mensagem bem clara. Pode ser encarado como um tapa na cara ou somente uma historia polêmica. Você decide.