Um Inverno Fora do Comum
[Manual de sobrevivência ao frio glacial das planícies canadenses]
De repente, você acorda de manhã e lá está ela, cobrindo toda a cidade e mudando toda a paisagem. É a neve trazendo o inverno para as geladas planícies do Canadá. Nada muito diferente do que acontece todo ano, desde que as primeiras famílias de colonizadores ucranianos colocaram os pés em Saskatchewan, no começo deste século. Todo ano o mesmo ritual se repete, com a neve caindo e depois as temperaturas descendo a níveis inimagináveis para um morador de um país tropical como o Brasil.
No começo você acha tudo lindo, até começar a descobrir os pequenos entraves de uma vida no freezer natural canadense. Para se ter uma idéia de como a vida pode tornar-se difícil depois que a cidade se cobre de branco e o inverno se instala, será conveniente explicar mais detalhadamente o que significa "fazer frio" aqui no Hemisfério Norte.
O inverno canadense é a marca registrada do país. O poeta e musico canadense Gilles Vignault, definiu em poucas palavras o significado desse fato: "Meu país não é um país, mas sim um inverno" . Os canadenses são famosos por falarem o tempo todo sobre o clima, fazendo desse assunto o tópico dominante em todas as conversas. Não existe diálogo possível sem algum comentário sobre o tempo, ou mesmo longas discussões sobre "como o último verão foi terrível", ou "como os meteorologistas estão prevendo um inverno moderado", etc.
Mas se os graus de temperaturas, os fatores dos ventos, as porcentagens de umidade, os centímetros de neve e outros tópicos fazem parte do dia-a-dia do canadense, isto acontece por uma boa razão: os invernos são mesmo terríveis e as condições climáticas podem chegar a termos de aberração!
O inverno, na prática, começa em outubro quando as temperaturas descem para abaixo de zero , e só vão subir novamente em abril ou maio. Dezembro e janeiro são os piores meses, quando as temperaturas podem chegar a -40 ou menos. O fator do vento também ajuda a piorar, pois dependendo da velocidade que o vento está soprando, as temperaturas podem chegar a extremos de -60. Cálculos matemáticos são necessários para evitar certos 'acidentes', como perder uma orelha ou um dedo. Se a temperatura estiver -30 e o vento estiver soprando na velocidade de 30 km/h, cuidado, pois a pele exposta a essa intempérie pode congelar em 3 segundos e necessita estar bem protegida.
Nas planícies de Saskatchewan essas condições são sentidas na sua total ferocidade. Na ausência total de montes e montanhas que ajudam a bloquear o vento, essa região está totalmente exposta aos ventos polares e ondas de frio vindas do ártico.
Mas nada pode ser completamente ruim. Em contraponto às baixíssimas temperaturas , o inverno nas planícies é bastante ensolarado, o que torna tudo mais fácil de suportar. Quanto mais ensolarado e sem nuvens estiver o céu, maior o frio. O fator "luz-Solar" é muito importante para elevar a moral de quem vai enfrentar 6 meses de frio pela frente. E é realmente inacreditável quando olhamos para fora da janela e vemos um lindo dia ensolarado , e olhamos para o termômetro e está -30. Daí em diante tudo é possível!
Convivendo com as condições climatológicas
Para os iniciantes na experiência de vivenciar invernos polares, alguns conselhos são amplamente necessários. A adaptação da noção de inverno temperado, para a de inverno rigoroso não é simples. Muitos conceitos básicos de convivência com as intempéries- já parte da consciência coletiva da população nativa, são difíceis de integrarem-se completamente na visão de um visitante estrangeiro.
A primeira lição é sobre roupas apropriadas, pois você vai olhar pela janela e ver o céu azul e o sol brilhando e não vai acreditar que está realmente frio. O vento vai esbofetear o seu rosto e depois de 3 passos sua testa já estará doendo, suas orelhas e seus dedos formigando e você desesperadamente vai correr pra dentro de casa e irá vestir-se apropriadamente.
Um perfeito outfit para os dias realmente frios deve incluir cachecol, touca, protetor de rosto, meias de lã e sapatos especiais, calça e camiseta térmica , jaqueta especial e mittens, que são luvas de couro e sem dedos, essenciais para manter as mãos protegidas. Só isso? Não. Além disso deve-se ter o maior cuidado para não ficar muito tempo exposto ao frio e nunca sair de casa sem antes ouvir a previsão meteorológica.
A segunda lição é sobre carros. Dirigir na via Dutra numa sexta-feira a noite pode ser mais seguro do que dirigir numa avenida cheia de neve e gelo. Nunca minimize o perigo. Depois que a neve cai , ela tende a se compactar nas ruas e virar gelo, transformando a cidade num imenso rink de patinação , mas para carros!
Normalmente as avenidas e ruas principais são mais seguras, já que nelas a prefeitura rapidamente manda máquinas especiais para tirar a neve, e joga toneladas de areia para evitar os deslizamentos e acidentes. Mas as ruas menos movimentadas ficam o inverno todo com uma espessa camada de gelo acumulado, e são geralmente os melhores lugares para se ter a experiência de perder o controle do carro. O segredo é dirigir devagar, começar a brecar metros antes e se o carro decidir dançar um samba, põe no ponto morto ou neutro (se seu carro for automático). Depois de vários invernos tudo fica fácil. É tudo uma questão de prática...
A terceira lição é sobre janelas. O costume comum no Brasil, de se chegar em casa e ir logo abrindo as janelas pra arejar, aqui pode se tornar um grande problema. É difícil encarar a idéia de viver por 6 meses numa casa hermeticamente fechada e sem ar fresco, mas não existe outra alternativa. Se você conseguir abrir a janela, quando as temperaturas subirem, não vai conseguir fechá-la mais tarde, quando certamente as temperaturas descerem novamente. Dai a casa vai esfriar terrivelmente e todos os artifícios e toda criatividade terá que ser usada para fechar o que não deveria ter sido aberto.
Finalmente, a última lição diz respeito à organização e paciência. Não convém sair atrasado para um compromisso, e você precisará calcular o tempo que irá levar limpando o carro (se estiver nevando) e esquentando o motor. Também não vai poder correr nas ruas cheias de gelo. Tudo se torna mais difícil, pois tem o tempo que se leva para vestir-se apropriadamente, e o peso que toda essa roupa acrescenta na sua agilidade para mover-se. Cuidado para não perder a luva ou a touca dentro do Shopping Center e só perceber isso depois que todas as lojas já estiverem fechadas. Prepare-se para enfrentar essa aberração climática com muita precaução e bom humor. E tudo pode tornar-se muito divertido e interessante.