Nurse Betty



Quando eu era uma criancinha e chorava quando alguém morria num filme, minha mãe amorosamente me abraçava e dizia: 'Ele não morreu de verdade! Ele é só um ator e continua vivo e essa é só uma história num filme, filhotinha!'. E eu me lembro que não me sentia melhor ou menos triste com essas declarações, mas certamente as palavras da minha mãe foram abrindo caminho para uma visão mais prática e objetiva do mundo, deixando a linha que separa a fantasia da realidade mais consistente.

Todos nós sabemos o poder que o cinema e a televisão têm e como eles podem ser usados como uma válvula de escape, para fugir da realidade e mergulhar na fantasia. Quem não se sente 'vivendo' o enredo, nas duas ou mais horas de duração de um filme ou episódio televisivo? O diretor Woody Allen já abordou esse tema, onde o cinema preenche a vida medíocre e sofrida de uma mulher comum, de uma maneira romântica e delicada em A Rosa Púrpura do Cairo.

Em Nurse Betty, o diretor Neil LaBute (de In The Company of Men) nos coloca de frente com a mesma trama. Na sua visão corrosiva e irônica da sociedade, o diretor propositalmente estreita absurdamente a linha entre fantasia e realidade e faz suas personagens perderem-se em conflitos de identidade e mergulharem fundo numa piscina de ilusão e devaneios.

Betty Sizemore (Renée Zellweger) é uma mulher simples e de bom caráter, que trabalha como garçonete num pequeno restaurante em Fair Oaks, Kansas e só tem o vício de assistir fanaticamente uma novela de tv chamada A Reason To Love. Vendo a novela, Betty suspira pelo protagonista da estória, o médico e herói David Ravell (Greg Kinnear), e esquece as canalhices do seu marido Del (Aaron Eckhart), que é um vendedor de carros que faz mais coisas sujas por baixo do pano, do que trair a esposa com a secretária.

Charlie (Morgan Freeman) e Wesley (Chris Rock) são dois matadores que chegam em Fair Oaks pra acertar 'negócios' com o ilícito Del Seizemore. Eles se encontram na sala da casa de Betty, que está no quarto assistindo a um tape gravado de sua novela favorita. O assunto esquenta na sala, mas a novela também está num ponto crucial. Enquanto na tela da televisão o Dr.David Ravell fala para a câmera que 'deve haver alguém muito especial reservado para mim por ai…', na sala a conversa fica terrivelmente tensa e quando Betty entreabre a porta para ver o que está acontecendo, testemunha o escalpelamento (ugh!) e o assassinado do seu marido.

Oh, essa linha tênue entre realidade e fantasia… Para Betty ela desaparece num instante, depois do trauma de ter presenciado tanta violência. Betty não é mais a garçonete que assiste a novela. Agora Betty acredita que é uma enfermeira e que tem que reencontrar o seu ex-noivo, o famoso e talentoso Dr. Ravell no seu hospital em 'Loma Vista, Los Angeles, Califórnia. Betty arruma as malas e vai em busca do seu amor e do seu sonho. Atrás dela vão os matadores, que querem o que ela está carregando no porta-malas do Buick que dirige e, obviamente, matá-la, finalizando o trabalho que iniciaram na sala da casa.

Betty vira Nurse Betty, consegue um emprego num hospital e encontra o ator George Maccord, que faz o Dr. Ravell na tv. Ela está vivendo o seu sonho, ela não tem idéia de que seu médico herói não existe. O ator vê em Betty uma profissional perfeccionista e obcecada. Ninguém pode acreditar que Betty pode ser uma maluca total, apaixonada por uma personagem de novela e vivendo num mundo de ilusões. O matador que a persegue, Charlie, também não acredita e durante a perseguição de carro, do Kansas até o sul da Califórnia, constrói uma visão idealizada de Betty e apaixona-se por ela. Mas a desilusão será o prato quente do dia, quando Betty se confrontar com a realidade num hospital cenário e quando Charlie se confrontar com a verdade sobre Betty.

Nurse Betty foi uma grande surpresa neste final de verão, encerrando uma temporada relativamente fraca em filmes inteligentes. Neil LaBute complementou um roteiro bem amarrado, com um tema fascinante e temperou tudo com sua visão dura e seca da natureza humana. Nurse Betty tem também um elenco brilhante, que dá vida e credibilidade para personagens tão reais, que acabamos nos solidarizando com as agruras deles - que são também as nossas. Pois não somos todos seres humanos tentando manter um equilíbrio saudável entre realidade e fantasia?




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